Digamos que ele é a cara de pele branca que passou no meio de uma manifestação ou a que ele mais viu no meio da fúria. Digamos também que ele é o homem que vagueia pela cidade a coleccionar as almas que lhe chamam mais a atenção. Digamos que, com o tempo, eles inventaram um espaço comum de silêncio e que sorriam um para o outro como se se encontrassem à meia-noite numa ponte entre dois países. Um dia, numas escadas, ela descia e ele subia e ainda não foi essa a primeira vez que a mão dele pousou na dela, mas ele pensou nisso, e ela pensou nisso, e eles afastaram-se a pensar nisso e à espera que isso se aproximasse deles. Ou seja
ele é o homem corpulento e de cabeça rapada que dorme com uma mão no sonho e outra no revólver e ela é a mulher sentada no sofá sujo da sala a pensar como, na meninice, a coisa que mais queria era ser bonita como a mãe, que usava baton muito escuro ao domingo e se passeava pelo adro da igreja com ela pela mão ou,
ele é o rapaz cego que se embebedou numa noite e que, perdido no tempo eterno da sua escuridão, se repetia três vezes em cada S do seu andar para não se desencontrar de si mesmo e ela olhava-o e sorria enquanto o olhava porque não sabia fazer mais nada e porque era para isso que lhe tinham pago ou
ele é o estrangeiro a beber um café quente no intervalo de uma estrada longa que desconhece e ela é a mulher loira vestida com uma gabardine verde-triste na cidade chuvosa e que estranha a ausência do homem que, no cinema no centro comercial em que ela é secretária, se costumava sentar à sua frente nas matinés de quinta-feira ou a olhar para o rio, silencioso por baixo das árvores e das folhas que caem, e ele é uma espécie de caçador de borboletas frustrado que não gosta do Outono, e ele passa à frente dela e repara como está tranquila, continua a andar e, mais à frente, volta a olhar para confirmar o que lhe deu para imaginar naqueles breves segundos, mas ela já lá não estava ou já não era exactamente a mesma e ele só continuou o seu caminho porque não tinha alternativa e
ele gostaria de lhe oferecer coisas, verdades e cartas que dessem para aquecer as mãos, fim do mês é dia trinta e a sexta é depois da quinta, quem vai lembrar-se de nós dentro de um ano, seis meses, quatro meses até, e da próxima vez que a vir juro que lhe toco só para ter a certeza que aquilo que vi é mesmo verdade.
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